Especialistas apontam que barreiras persistem e exigem compromissos reais das lideranças para transformar a cultura corporativa.
Nem sempre é fácil nomear o que impede as mulheres de avançar nas organizações. Em muitos casos, o problema não está em um episódio explícito de preconceito ou em uma barreira institucional clara, mas, sim, em um conjunto de silêncios, invisibilidades e práticas sutis que se acumulam ao longo do tempo e que, na prática, travam as carreiras femininas.
Para a gerente de Negócios e Inovação da Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa do Agronegócio (Fundepag), Flávia Motta, a desigualdade de gênero permanece evidente nos níveis mais altos das organizações, mesmo com os avanços conquistados nas últimas décadas. “Já foi pior, é verdade. Mas ainda não há paridade. As mulheres continuam tendo que lutar para ocupar espaços onde têm total competência para estar. E quem perde com isso é a sociedade como um todo”.
Flávia construiu sua carreira entre a engenharia de produção e a inovação tecnológica, passando por instituições como o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) até chegar à Fundepag. Como mulher e mãe, ela reconhece os desafios de conciliar múltiplas funções, em um cenário que ainda exige da mulher uma entrega muito maior para alcançar o mesmo reconhecimento. Entre os obstáculos, ela cita a persistência de práticas machistas naturalizadas, como o apagamento de ideias femininas em reuniões. “Já vivi isso. Eu falava algo e a ideia não avançava. Depois, um homem dizia a mesma coisa e era imediatamente validado. Isso ocorre o tempo todo”.
Essa sobrecarga, muitas vezes invisível, é um dos pontos destacados pela professora da FIA Business School e co-presidente da PWN São Paulo (Professional Women’s Network), Lina Nakata. Ela explica que uma das barreiras silenciosas à ascensão feminina nas empresas são as non-promotable tasks — tarefas que não agregam valor direto à carreira e que frequentemente recaem sobre mulheres. “São funções de bastidores, como revisar apresentações ou organizar reuniões. Elas consomem tempo, não são valorizadas e afastam as mulheres de atividades estratégicas que poderiam impulsionar suas trajetórias profissionais. Essas tarefas podem representar até 200 horas de trabalho a mais por ano”, explica.
Lina defende que políticas organizacionais inclusivas precisam estar enraizadas na cultura da empresa e serem respaldadas pela alta liderança. “Não é uma ação pontual, não é uma palestra. É um compromisso contínuo com equidade, representatividade e formação de lideranças mais inclusivas”.
A fundadora e CEO da Uzoma Diversidade, Eliane Leite Alcantara Malteze, compartilha dessa visão e reforça que qualquer transformação organizacional precisa passar pelo enfrentamento do machismo estrutural. Para ela, é necessário que o processo de mudança envolva letramento da liderança e ações permanentes de formação. “Temos que falar sobre equidade de gênero, sim, mas também sobre racismo. Naturalizamos desigualdades há tanto tempo que elas parecem normais. E não são. O espaço das mulheres, e das mulheres negras em especial, ainda precisa ser garantido nas estruturas de poder”.
Flávia lembra ainda que as empresas, independentemente do porte, devem se comprometer com essa pauta. “Missão, visão e valores não podem estar só na parede. Precisam estar no dia a dia”. Para ela, mesmo pequenas e médias empresas devem desenvolver políticas claras, com valores bem definidos, códigos de conduta e ações inegociáveis para garantir ambientes mais justos.
A maternidade também foi citada como ponto crítico. Flávia destaca que mulheres com filhos enfrentam desafios adicionais no mercado de trabalho, exigindo redes de apoio que nem sempre existem. “É uma nova vida que chega, uma nova esperança. E isso precisa ser acolhido também pelas empresas”. Além disso, ela aponta a importância de estimular a autoconfiança e a liderança feminina. “A síndrome da impostora ainda está muito presente entre as mulheres. Muitas vezes, por termos sido historicamente diminuídas, precisamos de mais incentivo para desabrochar”.
Sororidade, representatividade e a importância das cotas
A representatividade, segundo as especialistas, deve se estender a toda a cadeia produtiva — desde o quadro interno até a escolha de fornecedores. “Existem selos que certificam empresas lideradas por mulheres. É uma forma de estimular o mercado a se transformar como um todo”, ressalta Lina. E o avanço das mulheres nas organizações também depende de mudanças profundas nas relações interpessoais, entre elas, o fortalecimento da sororidade.
“Acredito muito que a mulher, quando está em uma posição de visibilidade, precisa puxar a outra. Só que, infelizmente, isso nem sempre ocorre”, acrescenta a apresentadora e jornalista Monaliza Pelicioni. Ela aponta que há uma cultura de competição entre mulheres que foi historicamente enraizada, estimulando comparações estéticas e profissionais. “Precisamos mudar essa ideia e fazer com que, de fato, mulheres estendam as mãos umas às outras”.
Eliane reforça que essa cultura da rivalidade é resultado de julgamentos criados e mantidos por estruturas patriarcais. “É o homem que diz quem é mais bonita, mais competente e nós acabamos reproduzindo isso. Precisamos sair dessa armadilha. Quando uma mulher ocupa um cargo de liderança, ela tem o dever de mentorar outras, de preparar o caminho para que outras cheguem lá também”.
Mesmo fora do ambiente corporativo, essa rede de apoio pode começar cedo, por meio do incentivo a estudantes ou profissionais em início de carreira. “Se você já está em uma posição de influência, use esse lugar para mostrar a outras mulheres que elas também pertencem a esses espaços. Porque ninguém é eterno no cargo. Se não tiver outra mulher pronta para ocupar, volta ao homem. E aí, de que adiantou?”, questiona Eliane.
Ampliando a discussão sobre o tema e trazendo um contraponto sobre a visão de constante disputa entre as mulheres nos ambientes corporativos, Lina aponta que, na prática, empresas lideradas por mulheres tendem a ter maior presença feminina em todos os níveis de liderança — alta, média e operacional. “Isso mostra que, sim, as mulheres se ajudam. Esse discurso de que não nos apoiamos precisa ser desconstruído com dados e exemplos reais. A representatividade importa, e muito”.
Ela lembra ainda que políticas de cotas têm sido importantes ferramentas para acelerar mudanças. “Na Europa, os conselhos de administração começaram exigindo 20% de mulheres. Depois passaram para 25%, hoje estão em 30%. E isso já está gerando resultados financeiros positivos”. Segundo Lina, quando não há avanço pelo argumento do valor humano, há pelo lado econômico.
No Brasil, no entanto, os números ainda são tímidos. A participação feminina nos conselhos administrativos é de apenas 8%, um dado que evidencia o quanto ainda há a caminhar. Flávia Mota também menciona a importância de políticas públicas e mudanças culturais, como o modelo sueco de licença parental. “Lá, a licença é de um ano e dividida entre homem e mulher. Isso ajuda a quebrar o machismo estrutural e reforça o papel dos pais no cuidado com os filhos”.
Eliane complementa que as cotas são medidas provisórias, necessárias enquanto a equidade plena não é alcançada. “Seja na política ou nas empresas, elas criam um ambiente mais seguro e representativo para que as mulheres não apenas entrem, mas permaneçam e transformem os espaços”.