À Sputnik Brasil, especialistas afirmam que a venda de carne, um dos produtos mais afetados pelo tarifaço dos Estados Unidos, pode ser reorientada para o mercado interno, onde há “um consumo represado imenso”, mas isso não acontecerá no curto prazo nem substituirá as exportações para os EUA.
Frigoríficos de Mato Grosso do Sul suspenderam a produção de carne bovina destinada aos Estados Unidos. A medida ocorre diante da tarifa extra de 50% sobre exportações brasileiras, anunciada pelo presidente norte-americano, Donald Trump, e prevista para entrar em vigor em 1º de agosto.
Segundo a Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (ABIEC), os frigoríficos estão avaliando se farão novos embarques de carne bovina para os EUA. O caso mostra que o tarifaço de Trump já afeta o setor de carne bovina do Brasil, um dos mais impactados pela medida, junto com os de café e suco de laranja.
À Sputnik Brasil, Renan Silva, gestor da Bluemetrix Asset, de recursos financeiros, ressalta que a maior compradora da carne bovina do Brasil é a China, mas os EUA vêm em segundo lugar, sendo responsáveis por 12% das exportações do produto brasileiro, “um mercado de que, a princípio, não podemos abrir mão”. Ele aponta que, se as tarifas realmente forem aplicadas em 50%, têm potencial para iniciar “uma crise sem precedentes no setor”.
“Doze por cento das exportações é muita coisa, é um número muito grande, e isso realmente teria um impacto. Primeiramente, a gente teria que tentar colocar essa carne para outros parceiros. […] No mercado interno nós teríamos queda no preço, mas a consequência disso é que os frigoríficos e a cadeia de produção vão ter dificuldade em pagar suas obrigações. Então a gente pode derivar para uma crise de crédito no agronegócio, bastante complicada e de difícil gerenciamento”, explica.
Ele aponta que o Brasil vem conseguindo abrir o leque de mercados e aumentou as exportações de carne bovina para os Emirados Árabes Unidos em 2024. Ainda assim, ele afirma que realocar toda a produção para outros parceiros “não é uma tarefa nada fácil”.
Silva frisa que há possibilidade de reorientar o produto para o mercado interno, onde há “um consumo represado imenso”, alimentado por uma inflação mediana alta, taxas de juros elevadas e endividamento das famílias. Segundo ele, se o governo conseguir melhorar o ambiente interno, o país terá um mercado consumidor “pujante”, capaz de absorver grande parte dessa produção, reduzindo a dependência externa.
“Só que isso não vai acontecer no curto prazo. Seria [necessário] um replanejamento, uma reestruturação, resolver problemas estruturais, e isso poderia demorar de 10 a 20 anos, para a gente começar a ter uma resposta, sob gestões de vários governos que tenham a boa intenção de prezar a renda do brasileiro e as condições, pelo ambiente de negócio interno.”
Silva considera que a bancada do agronegócio não vai poupar esforços para contornar a situação, e aponta que o cenário também é complexo para o lado dos EUA.
“Se tem uma coisa à qual o norte-americano é muito sensível é a renda, a perda do poder aquisitivo. Lá a renda, os salários não são indexados, então, […] para você subir o preço de US$ 0,10 cents (cerca de R$ 0,50 centavos) sobre qualquer produto, é muito complicado. E o consumidor para de consumir mesmo, ele não tem essa flexibilidade, e isso realmente também vai ser um fator de pressão sobre o Donald Trump.”
Alcides Torres, fundador e CEO da Scot Consultoria, afirma que perder o mercado norte-americano é ruim, mas que o mercado interno tem capacidade de absorver a produção.
Ele avalia que o Brasil também é capaz de redirecionar as exportações para outros mercados, e destaca que a carne brasileira é exportada “para mais de 100 países” e tem qualidade reconhecida pelos importadores.
“Porque ela é boa, tem preço bom, tem longa vida de prateleira e nós somos bons parceiros. A gente entrega o que a gente vende, a gente entrega no prazo correto, nós somos confiáveis nesse mercado. […] A gente manda para os Emirados e os Emirados redistribuem essa carne lá no Oriente Médio. É o mesmo que acontece com Hong Kong, com Vietnã. A gente exporta para esses países ou cidades-Estado, e esses países redistribuem.”
Entretanto, ele aponta que para a economia do agronegócio “a coisa pesa” se o cenário não mudar, pois, “na verdade, o que os EUA estão fazendo é um embargo às exportações brasileiras”.
Gustavo Bertotti, economista e head de renda variável da Fami Capital, afirma que o Brasil é um grande exportador de commodities e que as barreiras tarifárias norte-americanas, no médio prazo, vão “ter um impacto muito maior nos preços do Brasil no geral”.
“O Brasil, ele tem uma balança comercial muito pautada em commodities e depende muito do mercado internacional”, explica Bertotti.
Por mais que tenham outros mercados, diz, EUA e China são os principais do Brasil, por isso o mercado interno aguarda muito uma comunicação efetiva por parte do governo.
“A gente vem tendo muito ruído em cima disso – nas negociações com a Casa Branca, com Trump, a gente não tem nada -, e o mercado fica nessa cautela, muito ansioso.”
Ele afirma que substituir um mercado com a relevância dos EUA traz custos de entrada, que muitas vezes vão afetar os preços no Brasil e as margens de lucro das companhias.
Bertotti acrescenta que os impactos do tarifaço nos frigoríficos não serão tão significativos de imediato, pois as empresas estão na temporada de divulgação dos resultados corporativos. Porém ele afirma que a expectativa é que muitas companhias vão revisar suas guidances (previsões sobre ganhos financeiros futuros) para o próximo semestre e ano.
“Mesmo que a gente tenha um possível acordo posteriormente, nós temos ali, talvez, um impacto já na geração de receita futura até acontecer esse efeito de substituição de um mercado [por outro], caso venham a se concretizar essas barreiras de 50% sobre os produtos.”
Para ele, “o agronegócio no Brasil é muito forte”, mas o fato de o imbróglio envolver um dos principais parceiros comerciais do Brasil torna a situação complicada.