Por Willian Barbosa Sales*
Enquanto o Brasil celebra avanços no controle da raiva urbana, uma ameaça silenciosa cresce nos campos: a raiva em herbívoros, negligenciada pelo poder público e subestimada pela sociedade. Essa zoonose milenar, uma das mais letais conhecidas, continua circulando entre bovinos, equinos e caprinos, mantendo vivo o risco de spillover — a transposição do vírus para humanos.
Mais de 99% dos casos de raiva em herbívoros no Brasil são causados por morcegos hematófagos (Desmodus rotundus), que se alimentam de sangue, cuja proliferação é favorecida por desmatamento, expansão agropecuária e abrigos artificiais. Segundo dados do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), entre 1999 e 2022 foram registrados mais de 50 mil casos da doença, com picos em 2000 e 2003. Em 2021, São Paulo, Minas Gerais e Paraná lideraram as notificações. A subnotificação, reconhecida oficialmente, compromete a real dimensão do problema e dificulta ações preventivas eficazes.
A raiva em herbívoros gera perdas diretas — mortes, queda na produção, restrições comerciais — e custos indiretos com vacinação, vigilância e manejo de morcegos. Estima-se que o prejuízo anual na América Latina chegue a centenas de milhões de dólares. Cada foco mobiliza recursos públicos para investigação, vacinação emergencial e controle de transmissores, onerando ainda mais os sistemas de saúde e produção animal.
O risco de spillover para humanos, isto é, a migração do vírus de animais para a nossa espécie, é crescente. Nos últimos anos, a maioria dos casos de raiva em humanos foi causada por variantes do vírus associadas a morcegos, não mais a cães. Entre 2017 e 2023, a transmissão por morcegos superou a canina, inclusive com registros de transmissão secundária via felinos domésticos. A proximidade entre rebanhos, morcegos e populações rurais, agravada por mudanças ambientais, aumenta significativamente a exposição humana.
O enfrentamento da raiva em herbívoros e a prevenção do spillover são guiados por normas técnicas rigorosas. O Ministério da Saúde determina que todo acidente com animais de produção em áreas de risco deve ser avaliado para vacinação e/ou soro, sem observação de 10 dias para bovinos. O MAPA exige notificação obrigatória, vacinação inativada e controle seletivo de morcegos. No Paraná, a Portaria ADAPAR 368/2025 determina vacinação obrigatória de herbívoros domésticos a partir de três meses de idade em municípios com alta incidência, com prazo de até seis meses para imunização total dos rebanhos.
Ignorar a raiva rural é abrir espaço para a próxima emergência sanitária. Fortalecer a vigilância integrada, ampliar campanhas de vacinação, investir em educação sanitária e garantir acesso à profilaxia pós-exposição são medidas urgentes. A miopia institucional diante da raiva em herbívoros pode custar vidas humanas e bilhões ao agronegócio. É hora de o Brasil rural deixar de ser invisível para as políticas de saúde pública — a raiva não espera.
*Willian Barbosa Sales é Biólogo, Doutor em Saúde e Meio Ambiente, além de Coordenador dos cursos de Pós-graduação área da saúde do Centro Universitário Internacional UNINTER.